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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Daqueles cuja força é bruta

Assisti recentemente um vídeo no Jornal da Globo, de um de seus colunistas cujo nome não é necessário citar, que me fez lembrar muito um texto de Adorno, que trata justamente sobre ‘O fetichismo na música e a regressão da audição’. A abertura da reportagem mostra um cantor lírico em atividade e logo depois o colunista diz que o microfone libertou-nos da “força bruta” para o que realmente importa: timbre e afinação.
Pergunto eu: será que o colunista tem a mínima noção do que significam timbre e afinação? E quando digo mínima noção o digo do ponto de vista fisiológico; porque eu – e penso que falo por todos os meus amigos de profissão – me senti profundamente ofendida por esse comentário desnecessário e infeliz.
Em primeiro lugar, Sr., vou lhe contar como funcionam as coisas por aqui, no reino das pessoas de “força bruta”. Todo o trabalho do cantor lírico, inclusive desse aí, do início da reportagem, é a busca (eterna) por um domínio fisiológico, técnico e musical onde os pilares são justamente o timbre e afinação. Dizer ‘voz’ e ‘timbre’, em certa medida, é pleonástico. Dizer que um cantor não busca por timbre e afinação é dizer que ele trabalha sua voz da mesma forma que um jornalista trabalha um violino, ou seja, de forma nula. Com isso quero explicar que a função principal da técnica vocal é justamente essa. Todo cantor, depois de um certo grau de desenvolvimento domina esses fatores tão básicos. Exceto os cantores ruins, claro. Mas esses mudam logo de carreira. Vão fazer música popular, por exemplo. Não desmerecendo a (boa) musica popular, mas não é preciso ser especialista para notar que a diferença estética é razoavelmente grande.
Não existe “força bruta” no canto lírico, Sr. Esse som todo é resultado de um intenso trabalho muscular e, como eu já disse, um domínio fisiológico. Se Pavarotti usasse “força bruta”, não cantaria meia Aida. Ouça! É uma verdadeira aula sobre música, para o Sr que é interessado no assunto.
Existem sim diferenças estéticas fundamentais entre uma coisa e outra, mas não é o aparato tecnológico que garante a qualidade. O sr. certamente sabe disso, pessoa esclarecida que é. Não é o microfone que torna João Gilberto o artista que é;nem está a bossa-nova condicionada à tecnologia, mas sim à fatores sócio-culturais. Tecnologia não garante talento, e é preciso dominar bem mais que um laptop para sê-lo. É inegável o papel da tecnologia na música e as muitas possibilidades que ela gerou, mas nem de longe isso dita padrões de qualidade.
Banalizar a profissão de músico dessa forma não é a melhor forma de esclarecer o público, se era essa a intenção da reportagem. Entendo o papel da mídia como disseminadora de “cultura” (cultura de massa), mas, se essa disseminação, além de não esclarecer, gera indivíduos não críticos, que são apenas consumidores de um bem – nesse caso a música – isso é banalização. É justamente aquilo que nos diz Adorno em seu famoso texto. Aliás, recomendo a leitura. Já que a mídia tem esse poder de alcance e essa “influência”, que esse poder seja usado de forma responsável. Sua reportagem ofende a classe musicista desse país; aqueles que são profissionais como o são nossos médicos, engenheiros, arquitetos, advogados. Ser músico é isso. Ou seria certo afirmar que todo curandeiro ou hipocondríaco é um médico. Eles também tem “bastante conhecimento” sobre o assuto.
Em nome de todos os profissionais de música desse país (os de fato; aqueles que fazem arte, não bens de consumo), quero deixar registrada nossa indignação, na esperança que haja mais bom senso, responsabilidade e, principalmente, respeito.

Subscrevo-me,


Angélica Menezes

Um comentário:

  1. eu fico pensando o quanto é complicado, mas ao mesmo tempo desafiador, lidar com a mídia desinformada, que julga informar sobre aquilo que desconhece. Noutro dia li uma crítica que de modo contundente afirmava "o cantor lírico não é ator..." e por aí o responsável pela matéria discorreu algumas linhas. Cabe a quem tem o conhecimento de fato, ou quem o busca de modo incessante nas raízes onde ele está, não se calar. e posicionar-se, sem medo, tantas vezes quantas necessárias. Assim como você faz e, espero, continue fazendo...

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