Assisti recentemente um vídeo no Jornal da Globo, de um de seus colunistas cujo nome não é necessário citar, que me fez lembrar muito um texto de Adorno, que trata justamente sobre ‘O fetichismo na música e a regressão da audição’. A abertura da reportagem mostra um cantor lírico em atividade e logo depois o colunista diz que o microfone libertou-nos da “força bruta” para o que realmente importa: timbre e afinação.
Pergunto eu: será que o colunista tem a mínima noção do que significam timbre e afinação? E quando digo mínima noção o digo do ponto de vista fisiológico; porque eu – e penso que falo por todos os meus amigos de profissão – me senti profundamente ofendida por esse comentário desnecessário e infeliz.
Em primeiro lugar, Sr., vou lhe contar como funcionam as coisas por aqui, no reino das pessoas de “força bruta”. Todo o trabalho do cantor lírico, inclusive desse aí, do início da reportagem, é a busca (eterna) por um domínio fisiológico, técnico e musical onde os pilares são justamente o timbre e afinação. Dizer ‘voz’ e ‘timbre’, em certa medida, é pleonástico. Dizer que um cantor não busca por timbre e afinação é dizer que ele trabalha sua voz da mesma forma que um jornalista trabalha um violino, ou seja, de forma nula. Com isso quero explicar que a função principal da técnica vocal é justamente essa. Todo cantor, depois de um certo grau de desenvolvimento domina esses fatores tão básicos. Exceto os cantores ruins, claro. Mas esses mudam logo de carreira. Vão fazer música popular, por exemplo. Não desmerecendo a (boa) musica popular, mas não é preciso ser especialista para notar que a diferença estética é razoavelmente grande.
Não existe “força bruta” no canto lírico, Sr. Esse som todo é resultado de um intenso trabalho muscular e, como eu já disse, um domínio fisiológico. Se Pavarotti usasse “força bruta”, não cantaria meia Aida. Ouça! É uma verdadeira aula sobre música, para o Sr que é interessado no assunto.
Existem sim diferenças estéticas fundamentais entre uma coisa e outra, mas não é o aparato tecnológico que garante a qualidade. O sr. certamente sabe disso, pessoa esclarecida que é. Não é o microfone que torna João Gilberto o artista que é;nem está a bossa-nova condicionada à tecnologia, mas sim à fatores sócio-culturais. Tecnologia não garante talento, e é preciso dominar bem mais que um laptop para sê-lo. É inegável o papel da tecnologia na música e as muitas possibilidades que ela gerou, mas nem de longe isso dita padrões de qualidade.
Banalizar a profissão de músico dessa forma não é a melhor forma de esclarecer o público, se era essa a intenção da reportagem. Entendo o papel da mídia como disseminadora de “cultura” (cultura de massa), mas, se essa disseminação, além de não esclarecer, gera indivíduos não críticos, que são apenas consumidores de um bem – nesse caso a música – isso é banalização. É justamente aquilo que nos diz Adorno em seu famoso texto. Aliás, recomendo a leitura. Já que a mídia tem esse poder de alcance e essa “influência”, que esse poder seja usado de forma responsável. Sua reportagem ofende a classe musicista desse país; aqueles que são profissionais como o são nossos médicos, engenheiros, arquitetos, advogados. Ser músico é isso. Ou seria certo afirmar que todo curandeiro ou hipocondríaco é um médico. Eles também tem “bastante conhecimento” sobre o assuto.
Em nome de todos os profissionais de música desse país (os de fato; aqueles que fazem arte, não bens de consumo), quero deixar registrada nossa indignação, na esperança que haja mais bom senso, responsabilidade e, principalmente, respeito.
Subscrevo-me,
Angélica Menezes
Este é o espaço onde nós, cantores profissionais brasileiros, trocaremos informações, dúvidas, angústias profissionais, e uniremos nossas vozes em prol da melhoria das condições de trabalho dos músicos deste país, sejam cantores ou instrumentistas. Que seja este o primeiro passo em direção ao reconhecimento da profissão que escolhemos: cantores.
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Ouro pra música,lata pro futebol! Artigo(penta)musical.
Por Ulisses Montoni
Nas últimas semanas, acompanhei a transmissão dos jogos Pan-americanos, onde o Brasil se saiu muito bem, ganhando medalhas até em esportes onde não temos muita tradição. Muitos desses atletas quase ficaram de fora da competição porque não tinham patrocínio para treinar.Amigos músicos: isso faz vocês lembrarem de alguma coisa?
Esporte e arte são parecidos em muitos aspectos, e ambos sofrem com a falta de incentivo cultural e financeiro. Mas em se tratando de espírito de equipe,patriotismo e superação pessoal,esses atletas deram um banho em nós artistas...
Quase todos, eu diria... pois o glorificado,santificado,idolatrado(e patrocinado) futebol masculino,me fez sentir vontade de pedir minha cidadania Tanzaniana(pelo menos,de lá veio o Freddie Mercury,hehehe).Não sou amante de futebol,mas nessas ocasiões,tenho lá meu patriotismo recôndito,mas o que assisti foi tétrico.E mais tétrico ainda foi a explicação que deram pelo fracasso: “Ah,faltou um pouco mais de investimento financeiro no time...” MAIS investimento ainda? Se investissem na arte e na cultura 10% do que investem em futebol, todos nós, amigos artistas, poderíamos já estar tendo (gerúndio proposital) planos de “em qual país passarei o reveillon?” Pelo menos são meus planos...
Na última semana aconteceram dois grandes espetáculos em São Paulo: A ópera O Guarani, no Teatro São Pedro e o Réquiem de Verdi, no Municipal. Pelo fato de eu ainda não ter conseguido juntar grana suficiente para meu reveillon em Paris, precisei trabalhar e acabei não assistindo a nenhum desses espetáculos. Soube pelos amigos e colegas,participantes do Réquiem e do Guarani,que ambos foram um sucesso,e acredito mesmo que tenham sido.Ouvi também a revolta de alguns por causa de críticas meio ácidas(redundância?). Da minha parte, como artista, cantor e escritor (“Humm, ele se acha!”, diriam os críticos), saio em defesa da minha classe, imbuído pelo sentimento pan-americano de espírito de equipe, onde todos se defendem, por isso vencem a si próprios e aos adversários.
Como não assisti ao Réquiem, não posso opinar sobre os solistas internacionais. Mas se realmente não estavam à altura da obra,do teatro,da orquestra e do coro que os acompanharam,meus amigos,fiquem tranqüilos! A mediocridade até pode ser patrocinada, mas nunca escondida! Isso fica nítido, sempre. Vide nossos meninos de ouro(?) do futebol,ao representar esta pátria de (marias)chuteiras...
Mas fora tudo isso, se considerarmos o fato de que em uma única semana, duas obras maravilhosas foram apresentadas em São Paulo, com elenco 99% nacional, já é algo acontecendo. Pequeno,mas é algo.E parabéns aos que participaram desses espetáculos!
Deixo aqui meu abraço a todos os amigos e colegas dos Teatros São Pedro e Municipal, que fizeram parte desses dois eventos. A despeito de qualquer crítica não tão construtiva, quem sente o prazer imenso de subir no palco e cantar obras maravilhosas somos nós, artistas sem chuteiras, mas felizes!
E uma última notícia: Ouvi falar que vão dobrar o salário do Neymar!(É que agora ele é pai, né? Precisa sustentar a família...)
Ulisses Montoni é tenor,ator,não sabe jogar futebol,acha o Neymar ridículo e escreve sobre música de um ponto de vista pessoal,mas sempre focado na razão e no bom senso.
Nas últimas semanas, acompanhei a transmissão dos jogos Pan-americanos, onde o Brasil se saiu muito bem, ganhando medalhas até em esportes onde não temos muita tradição. Muitos desses atletas quase ficaram de fora da competição porque não tinham patrocínio para treinar.Amigos músicos: isso faz vocês lembrarem de alguma coisa?
Esporte e arte são parecidos em muitos aspectos, e ambos sofrem com a falta de incentivo cultural e financeiro. Mas em se tratando de espírito de equipe,patriotismo e superação pessoal,esses atletas deram um banho em nós artistas...
Quase todos, eu diria... pois o glorificado,santificado,idolatrado(e patrocinado) futebol masculino,me fez sentir vontade de pedir minha cidadania Tanzaniana(pelo menos,de lá veio o Freddie Mercury,hehehe).Não sou amante de futebol,mas nessas ocasiões,tenho lá meu patriotismo recôndito,mas o que assisti foi tétrico.E mais tétrico ainda foi a explicação que deram pelo fracasso: “Ah,faltou um pouco mais de investimento financeiro no time...” MAIS investimento ainda? Se investissem na arte e na cultura 10% do que investem em futebol, todos nós, amigos artistas, poderíamos já estar tendo (gerúndio proposital) planos de “em qual país passarei o reveillon?” Pelo menos são meus planos...
Na última semana aconteceram dois grandes espetáculos em São Paulo: A ópera O Guarani, no Teatro São Pedro e o Réquiem de Verdi, no Municipal. Pelo fato de eu ainda não ter conseguido juntar grana suficiente para meu reveillon em Paris, precisei trabalhar e acabei não assistindo a nenhum desses espetáculos. Soube pelos amigos e colegas,participantes do Réquiem e do Guarani,que ambos foram um sucesso,e acredito mesmo que tenham sido.Ouvi também a revolta de alguns por causa de críticas meio ácidas(redundância?). Da minha parte, como artista, cantor e escritor (“Humm, ele se acha!”, diriam os críticos), saio em defesa da minha classe, imbuído pelo sentimento pan-americano de espírito de equipe, onde todos se defendem, por isso vencem a si próprios e aos adversários.
Como não assisti ao Réquiem, não posso opinar sobre os solistas internacionais. Mas se realmente não estavam à altura da obra,do teatro,da orquestra e do coro que os acompanharam,meus amigos,fiquem tranqüilos! A mediocridade até pode ser patrocinada, mas nunca escondida! Isso fica nítido, sempre. Vide nossos meninos de ouro(?) do futebol,ao representar esta pátria de (marias)chuteiras...
Mas fora tudo isso, se considerarmos o fato de que em uma única semana, duas obras maravilhosas foram apresentadas em São Paulo, com elenco 99% nacional, já é algo acontecendo. Pequeno,mas é algo.E parabéns aos que participaram desses espetáculos!
Deixo aqui meu abraço a todos os amigos e colegas dos Teatros São Pedro e Municipal, que fizeram parte desses dois eventos. A despeito de qualquer crítica não tão construtiva, quem sente o prazer imenso de subir no palco e cantar obras maravilhosas somos nós, artistas sem chuteiras, mas felizes!
E uma última notícia: Ouvi falar que vão dobrar o salário do Neymar!(É que agora ele é pai, né? Precisa sustentar a família...)
Ulisses Montoni é tenor,ator,não sabe jogar futebol,acha o Neymar ridículo e escreve sobre música de um ponto de vista pessoal,mas sempre focado na razão e no bom senso.
terça-feira, 1 de novembro de 2011
O ÚLTIMO GRANDE CRÍTICO
Quando eu cursava o bacharelado, havia – ainda há – a necessidade de se cumprir certa carga horária de atividades programadas, que incluíam várias coisas; assistir a concertos e fazer um relatório, inclusive. Escrevíamos três ou quatro parágrafos meio inventados sobre um concerto assistido meses antes, um dia antes de ter que entregar os tais relatórios para o orientador assinar.
Depois de um tempo de “prática”, descobre-se que o trabalho fica simples, pois há frases e expressões que são padrões, como uma fórmula. Você só precisava mudar as datas, os nomes, a orquestra, e dava certo! Então usávamos nossas frases-modelo: “a orquestra soou bem, apesar de alguns desencontros” (é um generalismo óbvio, dá pra se dizer isso de qualquer concerto); “a soprano de voz brilhante (o que é absolutamente redundante) tinha um timbre agradável (ou não), voz potente (ou não), preencheu nossos ouvidos com sua técnica e fraseado perfeitos (ou não). São termos genéricos, expressões vazias de significado, que não dizem absolutamente.
Assim, caros leitores, ofereço-vos uma fórmula secreta, que fará com que todos nos tornemos críticos de arte! É só escolher o tema.
1. Para falar bem, use adjetivos bonitos, como nos romances de Paulo Coelho, do tipo: encantador, lindo, bonito, brilhante, e por aí vai.
2. Para falar mal, vale o modelo acima, é só usar os antônimos.
3. Para falar da técnica (aíiiiii já são termos mais técnicos. ): use palavras como potente, abafado, esquisito, instável, sonoro, “não entendo”, pronúncia, gritado etc.
4. Para falar da orquestra (isso é muito fácil): use termos como bem, na mão do maestro, desencontro, preparada, enfim. Use a criatividade! O que vale é o jogo de palavras.
Sendo assim, vou dar o primeiro passo e fazer uma bela crítica sobre o concerto X, com a orquestra Y, e o...sei lá...baixo-barítono W. Lá vai!
"Era uma noite calma e constelada. Nossos ânimos ansiosos na sala de espetáculo barulhenta e comovida. Ouve-se os três sinais, entra o maestro, todos se ajeitam em seus lugares, dão as últimas tossidas e pigarreadas, e a orquestra inicia a abertura. Alguns desencontros, mas logo o maestro põe ordem na casa e tudo flui bem até o fim da ópera.(isso porque você não conhece a música e, lógico, não vai nunca perceber que o trompete não tocou aquele tema que é SÓ o leitmotiv, os violinos não estavam juntos e tinha um violoncelo desafinado. Não vai perceber que as flautas não fizeram aquela passagem que está escrita. Mas continuemos. Os adjetivos é que são fundamentais, quem se importa com o trompete?).
A soprano (ou O soprano, se você ainda estiver na época dos castratti), nos brinda com seu belo timbre, frases perfeitas, interpretação maravilhosa, uma técnica que se assemelha a da grande Maria Callas (faça de conta que você foi amigo e instrutor vocal da Callas), uma grande diva brasileira. O tenor tinha uma voz metálica, pronúncia boa, preencheu a sala e nossos ouvidos, quase com violência. Interpretação boa. Presença boa. O barítono não. Esse tinha a voz muito escura, seus graves eram gritados, sua pronúncia era ruim. Na verdade acho que era baixo. Ou barítono. Não presta para o papel. Tinha que fazer outra coisa da vida (já chuta o balde porque você não vai saber mesmo explicar o que você quer dizer com nada disso. Falta alguma coisa? Ah, claro! A música! afinal, você é praticamente um Brahms e tem plena certeza de que pode julgar a composição alheia).
A música era fraca e feia (e fica por aqui. É até onde vai seu conhecimento vasto sobre composição, harmonia, contraponto, contexto histórico e estética).
E está pronto! Não precisa de parágrafo de conclusão não porque isso é coisa de acadêmico. Você é um profissional! Nem precisa ter fundamento o que você diz. Afinal, qualquer um pode ser músico. Nem profissão é! Se você ouve e gosta de música, pronto! Já pode começar a escrever.
Lendo vez ou outra certas “críticas” publicadas no “meio musical”, percebo que elas se assemelham muito aos nossos famigerados “relatórios de concerto”: não dizem absolutamente nada de realmente válido e são vazias de significado. Tem dois lados bons nisso: o primeiro é que ninguém do meio musical profissional leva isso a sério; o segundo é que a leitura rende alguns bons minutos de diversão.
Mário de Andrade foi, certamente, uma das mentes mais brilhantes do nosso século XX. Poeta, escritor, músico, formulador do pensamento musical nacionalista e crítico musical. No mais absoluto significado que o termo possa ter. Autor de importantes tratados sobre a música brasileira, pesquisador do folclore, é referência quando se trata de música no Brasil.
Faz-se necessário desde já, esclarecer a diferença entre um crítico de arte e alguém que gosta de dar “sua opinião”. A primeira e substancial diferença, é que um crítico de arte é, necessariamente, um especialista. Um conhecedor profundo do assunto, um argumentador com conteúdo. Stanislavski diz, em seu Manual do ator, que qualquer um pode julgar desfavoravelmente. Para elogiar, porém, é preciso ser um especialista. No mesmo livro, ele fala do papel, por vezes irresponsável de um “crítico de arte”; quão nociva pode ser uma crítica desconstrutiva - seja ela boa ou ruim - e como isso pode afetar o artista de uma forma por vezes irremediável. Em outras palavras: ser crítico requer, além de substância, responsabilidade e respeito pelo trabalho.
É um paradoxo pensar, por exemplo, que um crítico de arte não seja artista, ou que o seja na teoria, se é que isso é possível. O primeiro indício de ignorância está no vocabulário; um crítico usaria as palavras com propriedade, como faz Mário de Andrade ao se referir ao descuido dos compositores brasileiros em relação à prosódia; argumentando, exemplificando e sugerindo (Aspectos da Música Brasileira, 1939). Um curioso escolheria termos chulos, adjetivos sem significação ou justificação, apenas para expressar sua opinião e para “ficar bonito”, tal qual um poema de novela da rede globo. Nem mesmo se daria o trabalho de pesquisar o que é prosódia. Um crítico sério ouviria a Serenade, de Britten, admirando a bela parte escrita pelo compositor para trompa natural, e a habilidade do instrumentista em executá-lo, dominando o instrumento sem válvulas. Um ‘apreciador’ diria que o trompista tocou desafinado. Um crítico sério atentaria, naquela voz retumbante, que, apesar de retumbante, não se entendia a melodia, nem o ritmo, nem a letra; que aquele agudo poderoso só o foi porque estava quase uma 3ªm abaixo do que devia ser. O “apreciador” pararia no retumbante.
Em pensar que estudamos tanto para chegarmos a um nível ínfimo de conhecimento, sem nenhuma pretensão de, um dia, saber tudo, e para que? Basta ser um apreciador. Passar horas ouvindo ao invés de estudando. E isso faz de você um profissional da arte. Simples assim. De minha parte, acho que vou mudar de carreira. Essa coisa de música não está com nada! Qualquer um pode ser músico agora, é só ouvir uns cd’s, assistir uns dvd’s e frequentar as salas de espetáculo da cidade. Decidi que vou virar crítica, já que descobri a fórmula secreta. Só não decidi ainda sobre o que. Aceito sugestões.
Pobre Mário de Andrade...
Depois de um tempo de “prática”, descobre-se que o trabalho fica simples, pois há frases e expressões que são padrões, como uma fórmula. Você só precisava mudar as datas, os nomes, a orquestra, e dava certo! Então usávamos nossas frases-modelo: “a orquestra soou bem, apesar de alguns desencontros” (é um generalismo óbvio, dá pra se dizer isso de qualquer concerto); “a soprano de voz brilhante (o que é absolutamente redundante) tinha um timbre agradável (ou não), voz potente (ou não), preencheu nossos ouvidos com sua técnica e fraseado perfeitos (ou não). São termos genéricos, expressões vazias de significado, que não dizem absolutamente.
Assim, caros leitores, ofereço-vos uma fórmula secreta, que fará com que todos nos tornemos críticos de arte! É só escolher o tema.
1. Para falar bem, use adjetivos bonitos, como nos romances de Paulo Coelho, do tipo: encantador, lindo, bonito, brilhante, e por aí vai.
2. Para falar mal, vale o modelo acima, é só usar os antônimos.
3. Para falar da técnica (aíiiiii já são termos mais técnicos. ): use palavras como potente, abafado, esquisito, instável, sonoro, “não entendo”, pronúncia, gritado etc.
4. Para falar da orquestra (isso é muito fácil): use termos como bem, na mão do maestro, desencontro, preparada, enfim. Use a criatividade! O que vale é o jogo de palavras.
Sendo assim, vou dar o primeiro passo e fazer uma bela crítica sobre o concerto X, com a orquestra Y, e o...sei lá...baixo-barítono W. Lá vai!
"Era uma noite calma e constelada. Nossos ânimos ansiosos na sala de espetáculo barulhenta e comovida. Ouve-se os três sinais, entra o maestro, todos se ajeitam em seus lugares, dão as últimas tossidas e pigarreadas, e a orquestra inicia a abertura. Alguns desencontros, mas logo o maestro põe ordem na casa e tudo flui bem até o fim da ópera.(isso porque você não conhece a música e, lógico, não vai nunca perceber que o trompete não tocou aquele tema que é SÓ o leitmotiv, os violinos não estavam juntos e tinha um violoncelo desafinado. Não vai perceber que as flautas não fizeram aquela passagem que está escrita. Mas continuemos. Os adjetivos é que são fundamentais, quem se importa com o trompete?).
A soprano (ou O soprano, se você ainda estiver na época dos castratti), nos brinda com seu belo timbre, frases perfeitas, interpretação maravilhosa, uma técnica que se assemelha a da grande Maria Callas (faça de conta que você foi amigo e instrutor vocal da Callas), uma grande diva brasileira. O tenor tinha uma voz metálica, pronúncia boa, preencheu a sala e nossos ouvidos, quase com violência. Interpretação boa. Presença boa. O barítono não. Esse tinha a voz muito escura, seus graves eram gritados, sua pronúncia era ruim. Na verdade acho que era baixo. Ou barítono. Não presta para o papel. Tinha que fazer outra coisa da vida (já chuta o balde porque você não vai saber mesmo explicar o que você quer dizer com nada disso. Falta alguma coisa? Ah, claro! A música! afinal, você é praticamente um Brahms e tem plena certeza de que pode julgar a composição alheia).
A música era fraca e feia (e fica por aqui. É até onde vai seu conhecimento vasto sobre composição, harmonia, contraponto, contexto histórico e estética).
E está pronto! Não precisa de parágrafo de conclusão não porque isso é coisa de acadêmico. Você é um profissional! Nem precisa ter fundamento o que você diz. Afinal, qualquer um pode ser músico. Nem profissão é! Se você ouve e gosta de música, pronto! Já pode começar a escrever.
Lendo vez ou outra certas “críticas” publicadas no “meio musical”, percebo que elas se assemelham muito aos nossos famigerados “relatórios de concerto”: não dizem absolutamente nada de realmente válido e são vazias de significado. Tem dois lados bons nisso: o primeiro é que ninguém do meio musical profissional leva isso a sério; o segundo é que a leitura rende alguns bons minutos de diversão.
Mário de Andrade foi, certamente, uma das mentes mais brilhantes do nosso século XX. Poeta, escritor, músico, formulador do pensamento musical nacionalista e crítico musical. No mais absoluto significado que o termo possa ter. Autor de importantes tratados sobre a música brasileira, pesquisador do folclore, é referência quando se trata de música no Brasil.
Faz-se necessário desde já, esclarecer a diferença entre um crítico de arte e alguém que gosta de dar “sua opinião”. A primeira e substancial diferença, é que um crítico de arte é, necessariamente, um especialista. Um conhecedor profundo do assunto, um argumentador com conteúdo. Stanislavski diz, em seu Manual do ator, que qualquer um pode julgar desfavoravelmente. Para elogiar, porém, é preciso ser um especialista. No mesmo livro, ele fala do papel, por vezes irresponsável de um “crítico de arte”; quão nociva pode ser uma crítica desconstrutiva - seja ela boa ou ruim - e como isso pode afetar o artista de uma forma por vezes irremediável. Em outras palavras: ser crítico requer, além de substância, responsabilidade e respeito pelo trabalho.
É um paradoxo pensar, por exemplo, que um crítico de arte não seja artista, ou que o seja na teoria, se é que isso é possível. O primeiro indício de ignorância está no vocabulário; um crítico usaria as palavras com propriedade, como faz Mário de Andrade ao se referir ao descuido dos compositores brasileiros em relação à prosódia; argumentando, exemplificando e sugerindo (Aspectos da Música Brasileira, 1939). Um curioso escolheria termos chulos, adjetivos sem significação ou justificação, apenas para expressar sua opinião e para “ficar bonito”, tal qual um poema de novela da rede globo. Nem mesmo se daria o trabalho de pesquisar o que é prosódia. Um crítico sério ouviria a Serenade, de Britten, admirando a bela parte escrita pelo compositor para trompa natural, e a habilidade do instrumentista em executá-lo, dominando o instrumento sem válvulas. Um ‘apreciador’ diria que o trompista tocou desafinado. Um crítico sério atentaria, naquela voz retumbante, que, apesar de retumbante, não se entendia a melodia, nem o ritmo, nem a letra; que aquele agudo poderoso só o foi porque estava quase uma 3ªm abaixo do que devia ser. O “apreciador” pararia no retumbante.
Em pensar que estudamos tanto para chegarmos a um nível ínfimo de conhecimento, sem nenhuma pretensão de, um dia, saber tudo, e para que? Basta ser um apreciador. Passar horas ouvindo ao invés de estudando. E isso faz de você um profissional da arte. Simples assim. De minha parte, acho que vou mudar de carreira. Essa coisa de música não está com nada! Qualquer um pode ser músico agora, é só ouvir uns cd’s, assistir uns dvd’s e frequentar as salas de espetáculo da cidade. Decidi que vou virar crítica, já que descobri a fórmula secreta. Só não decidi ainda sobre o que. Aceito sugestões.
Pobre Mário de Andrade...
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