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terça-feira, 1 de novembro de 2011

O ÚLTIMO GRANDE CRÍTICO

Quando eu cursava o bacharelado, havia – ainda há – a necessidade de se cumprir certa carga horária de atividades programadas, que incluíam várias coisas; assistir a concertos e fazer um relatório, inclusive. Escrevíamos três ou quatro parágrafos meio inventados sobre um concerto assistido meses antes, um dia antes de ter que entregar os tais relatórios para o orientador assinar.
Depois de um tempo de “prática”, descobre-se que o trabalho fica simples, pois há frases e expressões que são padrões, como uma fórmula. Você só precisava mudar as datas, os nomes, a orquestra, e dava certo! Então usávamos nossas frases-modelo: “a orquestra soou bem, apesar de alguns desencontros” (é um generalismo óbvio, dá pra se dizer isso de qualquer concerto); “a soprano de voz brilhante (o que é absolutamente redundante) tinha um timbre agradável (ou não), voz potente (ou não), preencheu nossos ouvidos com sua técnica e fraseado perfeitos (ou não). São termos genéricos, expressões vazias de significado, que não dizem absolutamente.
Assim, caros leitores, ofereço-vos uma fórmula secreta, que fará com que todos nos tornemos críticos de arte! É só escolher o tema.
1. Para falar bem, use adjetivos bonitos, como nos romances de Paulo Coelho, do tipo: encantador, lindo, bonito, brilhante, e por aí vai.
2. Para falar mal, vale o modelo acima, é só usar os antônimos.
3. Para falar da técnica (aíiiiii já são termos mais técnicos. ): use palavras como potente, abafado, esquisito, instável, sonoro, “não entendo”, pronúncia, gritado etc.
4. Para falar da orquestra (isso é muito fácil): use termos como bem, na mão do maestro, desencontro, preparada, enfim. Use a criatividade! O que vale é o jogo de palavras.
Sendo assim, vou dar o primeiro passo e fazer uma bela crítica sobre o concerto X, com a orquestra Y, e o...sei lá...baixo-barítono W. Lá vai!


"Era uma noite calma e constelada. Nossos ânimos ansiosos na sala de espetáculo barulhenta e comovida. Ouve-se os três sinais, entra o maestro, todos se ajeitam em seus lugares, dão as últimas tossidas e pigarreadas, e a orquestra inicia a abertura. Alguns desencontros, mas logo o maestro põe ordem na casa e tudo flui bem até o fim da ópera.(isso porque você não conhece a música e, lógico, não vai nunca perceber que o trompete não tocou aquele tema que é SÓ o leitmotiv, os violinos não estavam juntos e tinha um violoncelo desafinado. Não vai perceber que as flautas não fizeram aquela passagem que está escrita. Mas continuemos. Os adjetivos é que são fundamentais, quem se importa com o trompete?).
A soprano (ou O soprano, se você ainda estiver na época dos castratti), nos brinda com seu belo timbre, frases perfeitas, interpretação maravilhosa, uma técnica que se assemelha a da grande Maria Callas (faça de conta que você foi amigo e instrutor vocal da Callas), uma grande diva brasileira. O tenor tinha uma voz metálica, pronúncia boa, preencheu a sala e nossos ouvidos, quase com violência. Interpretação boa. Presença boa. O barítono não. Esse tinha a voz muito escura, seus graves eram gritados, sua pronúncia era ruim. Na verdade acho que era baixo. Ou barítono. Não presta para o papel. Tinha que fazer outra coisa da vida (já chuta o balde porque você não vai saber mesmo explicar o que você quer dizer com nada disso. Falta alguma coisa? Ah, claro! A música! afinal, você é praticamente um Brahms e tem plena certeza de que pode julgar a composição alheia).
A música era fraca e feia (e fica por aqui. É até onde vai seu conhecimento vasto sobre composição, harmonia, contraponto, contexto histórico e estética).

E está pronto! Não precisa de parágrafo de conclusão não porque isso é coisa de acadêmico. Você é um profissional! Nem precisa ter fundamento o que você diz. Afinal, qualquer um pode ser músico. Nem profissão é! Se você ouve e gosta de música, pronto! Já pode começar a escrever.

Lendo vez ou outra certas “críticas” publicadas no “meio musical”, percebo que elas se assemelham muito aos nossos famigerados “relatórios de concerto”: não dizem absolutamente nada de realmente válido e são vazias de significado. Tem dois lados bons nisso: o primeiro é que ninguém do meio musical profissional leva isso a sério; o segundo é que a leitura rende alguns bons minutos de diversão.
Mário de Andrade foi, certamente, uma das mentes mais brilhantes do nosso século XX. Poeta, escritor, músico, formulador do pensamento musical nacionalista e crítico musical. No mais absoluto significado que o termo possa ter. Autor de importantes tratados sobre a música brasileira, pesquisador do folclore, é referência quando se trata de música no Brasil.
Faz-se necessário desde já, esclarecer a diferença entre um crítico de arte e alguém que gosta de dar “sua opinião”. A primeira e substancial diferença, é que um crítico de arte é, necessariamente, um especialista. Um conhecedor profundo do assunto, um argumentador com conteúdo. Stanislavski diz, em seu Manual do ator, que qualquer um pode julgar desfavoravelmente. Para elogiar, porém, é preciso ser um especialista. No mesmo livro, ele fala do papel, por vezes irresponsável de um “crítico de arte”; quão nociva pode ser uma crítica desconstrutiva - seja ela boa ou ruim - e como isso pode afetar o artista de uma forma por vezes irremediável. Em outras palavras: ser crítico requer, além de substância, responsabilidade e respeito pelo trabalho.
É um paradoxo pensar, por exemplo, que um crítico de arte não seja artista, ou que o seja na teoria, se é que isso é possível. O primeiro indício de ignorância está no vocabulário; um crítico usaria as palavras com propriedade, como faz Mário de Andrade ao se referir ao descuido dos compositores brasileiros em relação à prosódia; argumentando, exemplificando e sugerindo (Aspectos da Música Brasileira, 1939). Um curioso escolheria termos chulos, adjetivos sem significação ou justificação, apenas para expressar sua opinião e para “ficar bonito”, tal qual um poema de novela da rede globo. Nem mesmo se daria o trabalho de pesquisar o que é prosódia. Um crítico sério ouviria a Serenade, de Britten, admirando a bela parte escrita pelo compositor para trompa natural, e a habilidade do instrumentista em executá-lo, dominando o instrumento sem válvulas. Um ‘apreciador’ diria que o trompista tocou desafinado. Um crítico sério atentaria, naquela voz retumbante, que, apesar de retumbante, não se entendia a melodia, nem o ritmo, nem a letra; que aquele agudo poderoso só o foi porque estava quase uma 3ªm abaixo do que devia ser. O “apreciador” pararia no retumbante.
Em pensar que estudamos tanto para chegarmos a um nível ínfimo de conhecimento, sem nenhuma pretensão de, um dia, saber tudo, e para que? Basta ser um apreciador. Passar horas ouvindo ao invés de estudando. E isso faz de você um profissional da arte. Simples assim. De minha parte, acho que vou mudar de carreira. Essa coisa de música não está com nada! Qualquer um pode ser músico agora, é só ouvir uns cd’s, assistir uns dvd’s e frequentar as salas de espetáculo da cidade. Decidi que vou virar crítica, já que descobri a fórmula secreta. Só não decidi ainda sobre o que. Aceito sugestões.

Pobre Mário de Andrade...

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