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domingo, 7 de novembro de 2010

A Síndrome

Por Angélica Menezes

Dia desses levei aos meus alunos trechos de Carmen e A Flauta Mágica. Nosso trabalho era traçar o perfil das personagens Carmen e Rainha da noite, observando como o corpo das cantoras-atrizes relacionava-se ao personagem que interpretavam. Logo nos primeiros minutos, um aluno – a grande maioria deles nunca tinha visto ópera, nem mesmo pela TV – pergunta: mas professora, é música ou é teatro? Não precisou muito para descobrirem que ópera é efetivamente a junção dos dois. Obrigatória e inseparavelmente.
É triste pensar que muitos de nossos talentosos representantes da cena lírica não entendam isso, e que ainda hoje somos obrigados a ouvir por aí: ah, mas eu não sou ator, sou cantor. Então tá, querido (a), me diz uma coisa: você tá interpretando algum personagem, ou é só você mesmo? Porque se for só isso então não quero, não. Me chama de novo quando for cantar com piano algum ciclo aí ou um recital de música brasileira, que assim nem preciso me esforçar pra entender o que está dizendo (ou não, depende da dicção...). Se é opera eu quero ver a personagem. E nem me venha com esse super agudo brilhante e “coberto” feito por um corpo inexistente em cena, que podia ser uma porta ou uma árvore, e ia dar no mesmo. Ai, se as árvores cantassem...ia ter muito cantor lírico sem emprego.
Penso, porém, que uma nova geração de cantatores e cantatrizes vem surgindo. Há tempos que, na Europa, as tradicionais montagens cantor-estátua dão lugar a montagens onde o trabalho corporal e cênico do cantor é tão importante quanto o trabalho vocal. E cada vez mais cresce a consciência do cantor em relação a isso (graças!). Basta lembrar que os grandes encenadores do século XX utilizaram-se da ópera como laboratório. Para Craig, o verdadeiro teatro incluía música; Ronconi teve sua trajetória marcada pela encenação de óperas; Wieland Wagner dirigiu montagens de Richard Wagner. Para o teatro do século XX, a utilização do material sonoro unifica todos os elementos do espetáculo. É claro pensar que a ópera seja, então, o laboratório perfeito. Nesse sentido cabe relacionar a importância do trabalho de Grotowski, em que o teatro acontece no corpo do ator, e todo o resto é acessório. Logicamente que, para isso, o ator precisa ter consciência do seu corpo.
A ópera já nasceu unindo drama e música; desde as aspirações da Camerata Bardi, inspiradas nos melodramas gregos. De Monteverdi a Wagner, o que vemos é um espetáculo onde a música é o meio sonoro utilizado, mas a cena está lá: personagens, suas histórias, enredo, ambiente, tempo etc. A pergunta que não quer calar é: por que (POR QUE??!!) ainda há cantores que se orgulham em abrir a boca e dizer orgulhosa, porém ignorantemente, que não é ator, e sim cantor? É a síndrome do cantor-estátua-minha-voz-me-basta. Será que isso tem cura?
Particularmente me incomodam cada vez mais essas montagens tão chulas, nesse sentido. O que vemos são cantores (e público, lógico) delirando em cadências maravilhosas que terminam num do5, mas onde a atuação desse mesmo cantor se limita a exibicionismo vocal, ou – o que é bem pior – a uma representação patética, que nada mais é que uma colagem de gestos e ações prontas, copiadas das dezenas de versões que os cantores assistem antes de “comporem seus personagens”, e vendidas como autênticas interpretações. Hein? Autênticas?
A esse respeito, voltemo-nos a W. Wagner, aquele encenador, ou como gostam de chamar alguns entendidos do assunto, regisseur, que afirma que “a representação do ator-cantor baseia-se mais na atitude signo, no gesto único carregado de um máximo de eficiência expressiva, do que num movimento cuja agitação não consegue camuflar os estereótipos” (ROUBINE, J. J. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998, pág. 148). E bota estereótipo nisso!
Mas o buraco é bem mais embaixo. Estamos cercados de regisseures que não fazem idéia de como lidar com essa coisa complexa que é montar uma ópera, e, na ausência dessa idéia, ficamos eternamente presos ao “tradicional”, ou seja lá que nome tenha. É preciso, antes de tudo, que haja diretores conscientes e dispostos a mudar a situação, e tirar essas montagens dessa estagnação cênica na qual nos encontramos. Não que não haja, mas é preciso que isso se torne um padrão! Eles também precisam tratar o cantor como ator, sim, e não se intimidar pelo ego de muitos deles (e bota ego nisso!).
Enfim, amigos cantatores, é preciso que comecemos a mudar nossas mentes nesse sentido, e nos convencermos de que nossas vozes não nos basta, quando o assunto é interpretação. A ação é fundamental, e toda ação começa no corpo. Vamos nos livrar da síndrome do cantor-estátua-minha-voz-me-basta!

3 comentários:

  1. Nalini Menezes: Concordo plenamente, desde o momento que o cantor pisa no palco, quer seja para cantar ópera ou até mesmo canções, o eu-lírico tem que estar presente, ou seja, tem que interpretar um personagem que não ele mesmo (o cantor). Abaixo ao egocentrismo!

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  2. O fato é que o trabalho de quem está no palco é um eterno estar a serviço da obra -não a serviço de si mesmo e nem do autor ou do compositor, porque a obra, depois de pronta, já tem autonomia, como foi bem posto pelo filósofo Hans-Georg Gadamer. Se assim é, colocar-se a serviço da obra é considerar o seu corpo como espaço de representação... eu como artista cedo este espaço e faço o possível para torná-lo disponível para ser ocupado pela obra. Sem esse sentido filosófico do que é ser artista é impossível sê-lo (eu acho). Num tempo em que o culto às celebridades é mais importante do que tudo, em que as eternas crianças adultas precisam dos aplausos e dos holofotes para se sentirem amados por alguém, ensinar determinados valores aos jovens artistas é missão de muitos de nós. Comecemos pelo nosso exemplo! No seu caso, Angélica querida, um belo e valioso exemplo!

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